Antes de partir para uma viagem de 21 dias pela África do Sul, onde encontraria uma amiga, algumas pessoas me alertaram sobre o perigo de duas mulheres viajarem sozinhas pelo país.
Passaríamos uma semana em Cape Town, mas depois alugaríamos um carro para conhecer outras regiões mais remotas. E assim o fizemos, viagem essa que venho relatando nos últimos (e nos próximos) textos do blog.
Diante esses alardes, em forma de conselhos, fiz muita pesquisa sobre os riscos reais que duas mulheres pudessem correr na estrada, nas grandes cidades e no interior. Também conversei com pessoas que já tinham feito essa viagem, até que entendi que alto é o índice de violência doméstica, ou seja, as mulheres sul-africanas são as maiores vítimas.
Segundo a ONU, em sua maioria, são seus parceiros que cometem estupro, agressão e abuso, dentro de casa. Nas áreas rurais, são comuns práticas violentas como o casamento infantil, o rapto para casamento (‘ukuthwala’) e a poligamia, que frequentemente dão origem à violência doméstica.
Uma triste realidade, que se agrava devido à falta de indiciamento e punição dos agressores e o fracasso na aplicação de mandados de proteção as mulheres sul-africanas, segundo mostram os dados do relatório da Comissão sobre a Eliminação da Discriminação a Mulheres, Cedaw.
Violência e desigualdade social na África do Sul
A África do Sul é o país mais desigual do mundo, segundo o Banco Mundial. Mesmo 30 anos após o fim do apartheid, a segregação racial, social e econômica permanece, reforçando as desigualdades.
Os anos de colonialismo e de regime separatista minaram o acesso da população negra à educação, saúde e às oportunidades de crescimento. As feridas continuam abertas, mas a pele que sangra tem cor.
Acredito que esse cenário foi o que mais impactou a minha experiência no país. Mais do que o fato de ser mulher, pois todo esse contexto limitou, principalmente, o contato e a interação com a cultura originária.
Quanto maior a desigualdade, maior a violência. E o medo cria distâncias.
Tentativa de assalto
Tivemos apenas um episódio ruim, uma tentativa de assalto, quando chegamos a Port Elizabeth. Fomos até o aeroporto entregar o carro alugado e voltamos para o hotel caminhando. Estava escurecendo, mas ainda havia um pouco de luz.
No lusco-fusco, fomos abordadas por um rapaz (não devia ter nem 20 anos), que nos pediu dinheiro de forma um pouco agressiva. Era um jovem, negro, vivendo nas ruas, como muitos no país.
Ficamos com medo de abrir a bolsa, pois estávamos com passaporte e perdê-lo seria um pesadelo. Lhe ofereci, então, uma garrafa de água, que tinha acabado de comprar. Para nosso espanto, ele aceitou e foi embora.
Foi um momento de tensão, mas sobretudo de tristeza, porque ele não iria nos fazer mal, pelo menos foi o que senti. O rombo maior foi no meu coração, porque a miséria é a condição mais desumana que existe, e escancara o fracasso global em termos de organização social.
Após 21 dias na estrada, percorrendo cidades e vilarejos, montanhas e praias, percebi que as limitações nessa viagem tiveram menos a ver com o fato de ser mulher, do que com os reflexos da imensa desigualdade social no país. A África do Sul é rica em beleza natural, mas cruel com o seu povo.
Mulheres na estrada: perigos, limites e belezas da África do Sul
Eu ia terminar esse texto dizendo que não acho perigoso para uma mulher viajar sozinha pelo país, conforme a minha experiência. Ou melhor, que é preciso sim estar atenta e tomar cuidados básicos, como evitar dirigir ou andar sozinha a noite, por exemplo.
Mas na semana em que o publicaria fui surpreendida pela notícia da brasileira Caroline Amanda, que estava desaparecida na África do Sul, mas foi encontrada após um pedido de socorro feito em uma live no Instagram.
Até o momento desta publicação, a notícia que tivemos é que ela estava hospitalizada, com hematomas nas mãos e nos braços, e a perna esquerda imobilizada. Ela estava bem, dentro do possível, visto que fora vítima de tortura e abuso sexual em Joanesburgo.
Resolvi, então, modificar o final desse texto; afinal de contas, nós mulheres não temos paz em nenhum lugar do mundo, ao que tudo indica. Nunca estaremos seguras enquanto vivermos em um sistema patriarcal que nos vê como corpos, passíveis de serem dominados, violados e mortos.
Mas ainda assim, não vamos nos calar, nem nos esconder, nem sucumbir ao medo, porque temos o direito de tentar, de ir, de sermos o que quisermos ser. E de viver. É perigoso, sim, mas que isso não nos paralise, mas nos dê força para continuar, para lutar e transformar esse cenário, apesar de tudo (e todos) que querem nos fazer acreditar que não podemos.
Há muitos espinhos no nosso caminho, mas também há flores, e é por elas, que seguimos. Espero que Caroline (e todas as mulheres que sofrem ou sofreram violência) se recupere, apesar de saber que feridas como essas não cicatrizam facilmente.
Precisamos umas das outras para nos fortalecermos e podermos seguir perseguindo nossos sonhos.
Para terminar, faço questão de compartilhar as belezas que encontrei no caminho, que não foi fácil, mas percorrido, do início ao fim, lidando com medos, limites, mas sobretudo com superações. Sigamos.
Que nada nos defina, que nada nos sujeite.
Simone de Beauvoir
Registros da segunda etapa da viagem pela África do Sul: vinícolas e Garden Route.






Descubra mais sobre Adriana Prosdocimi | Psicóloga e Psicanalista
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Que lindo e forte relato, Dri. Arrasou!
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