Todo fim de ano parece repetir o mesmo roteiro. Agendas lotadas, encontros marcados, festas, mensagens que começam com “precisamos nos ver antes do ano acabar”. Uma urgência toma conta dos últimos dias do ano, como, ao se aproximar do fim, cobrasse uma prestação de contas.
É tempo de celebrar, dizem. Tempo de agradecer, brindar, fazer planos. E é bonito esse movimento coletivo. Mas, para além da festa, algo se intensifica em silêncio: uma inquietação difícil de nomear. Como se o fim do ano encerrasse ciclos, mas também abrisse perguntas que preferimos adiar ao longo dos meses.
O que exatamente termina quando o ano acaba?
Apenas o número no calendário — ou a ilusão de que ainda há tempo para tudo?
Talvez o excesso desses dias não seja apenas celebração. Seja também uma forma de não olhar para o que ficou pelo caminho. Para os dias comuns que não cabem em retrospectivas, mas que sustentam — ou esvaziam — uma vida.
É uma época de excessos — de gente, de comida, de álcool, de expectativas. Há algo de vivo nisso: confraternizar, brindar a vida! Ainda assim, esse período vem acompanhado de uma ansiedade difícil de nomear. Um incômodo silencioso, que aparece quando tudo parece pedir entusiasmo.
Na contramão desse movimento, sinto vontade de me recolher. Como se o fim do ano pedisse mais pausa do que celebração. O verão chega com seus convites à curtição, aos dias ensolarados, às promessas de felicidade. “Dias para ser feliz”, dizem. E o que fazemos com todos os outros?
O fim do ano não é apenas um marco no calendário
Ele nos coloca diante da ideia de fim — mesmo quando sabemos que algo renasce depois. Porque o começo vem sempre depois do fim. Ainda assim, o fim nos desorganiza. Ele interrompe a fantasia de continuidade, de que tudo pode seguir sem cortes.
Talvez seja por isso que o frenesi aumente quando chegamos ao final. O fim nos confronta com o tempo, com os limites, com o que não foi vivido. E, diante desse confronto, muitas vezes escolhemos o excesso.
Outro dia, conversando com parentes sobre morte — ou, sobre o fim da vida — falamos de jazigos, de providências práticas. A conversa, num primeiro momento, me atravessou. Mas logo lembrei do que sempre digo: precisamos falar mais sobre a morte, em vez de apenas temê-la.
Afinal, ela é a única certeza que temos. E nós adoramos certezas. Curiosamente, o que fazemos é silenciar. Não falamos sobre a morte, não falamos sobre o fim.
Na psicanálise, aprendemos que o que não é simbolizado retorna de outro modo. Muitas vezes como excesso, anestesia, repetição. Talvez por isso, quando o fim se aproxima, tantas pessoas se entorpeçam. Não apenas para celebrar, mas para não sentir.
No fundo, talvez não seja o fim que nos assuste — mas aquilo que ele nos obriga a reconhecer.
O fim do ano, o fim de um ciclo, o fim de uma vida escancaram perguntas que preferimos adiar. O que fizemos com os nossos dias? Onde colocamos o desejo ao longo do caminho? Por que precisamos de um marco final para autorizar a felicidade, o encontro, o descanso?
Se só conseguimos ser felizes no fim, o que acontece com todos os outros dias? O que neles é vivido no automático, no adiamento, na repetição? Talvez o excesso não seja apenas celebração, mas uma forma de não olhar — para o que faltou, para o que se perdeu, para o que nunca foi escolhido.
Talvez o convite não seja viver mais intensamente no fim, mas olhar com mais honestidade para o meio. Para os dias comuns. Para aquilo que, sem fogos ou brindes, também constrói — ou esvazia — uma vida.
Se esse texto te atravessou, talvez valha a pena se perguntar como você tem habitado os seus dias — não apenas quando algo termina, mas enquanto a vida acontece.
Descubra mais sobre Adriana Prosdocimi | Psicóloga e Psicanalista
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